Depois de décadas de impunidade, o Brasil dá os primeiros passos para combater o uso de drogas por motoristas. Até o final do ano deve entrar em vigor a Resolução 460 do Contran , que incluiu o exame toxicológico de larga janela de detecção como obrigatório na renovação e/ou adição da CNH – Carteira Nacional de Habilitação, categorias C, D e E, na maioria dos casos, referente a motoristas profissionais.
Esse exame toxicológico é mais popularmente conhecido como exame de cabelo porque, através da extração de pequena quantidade de cabelo, é possível constatar o uso de qualquer droga, incluindo anfetaminas, até pelo menos 90 dias antes da coleta. Esse procedimento já é utilizado no Brasil por empresas aéreas, em concursos públicos para as polícias militares, Federal e Rodoviária Federal. O exame de cabelo (queratina) também pode ser feito com amostras de pelos de qualquer parte do corpo, como por exemplo, pelos da perna, braço, axila, peito e outros.
O termo “exame de larga janela de detecção”, é porque , ao contrários dos exames de urina e saliva, é possível detectar o uso de drogas nos últimos meses e não apenas horas antes, no caso da saliva ou poucos dias nos exames de urina. Através do exame de larga janela é possível identificar o usuário de drogas regular cumprindo o papel mais importante do processo que não é o de simplesmente flagrar, no ato, um motorista sob efeito das drogas, mas evitar que quem dirige regularmente use substâncias que alterem a capacidade motora ou mascarem o cansaço e a fadiga, de forma ilícita.
Na avaliação de Rodrigo Kleinubing, perito criminalístico e coautor do livro “Dinâmica dos Acidentes de Trânsito”, os exames contribuem para reduzir as falhas do fator humano, causa mais frequente dos acidentes. “O tempo de reação do motorista é fundamental para evitar um acidente. Ou seja, quando ele percebe o risco e começa a reagir. Quando está sob efeito de drogas esse tempo é ainda maior e as consequências mais graves.”, explica Kleinubing. O perito recorda ainda que, no caso de veículos de carga, o espaço necessário para a parada total do veículo em uma frenagem é muito maior do que o de um automóvel. Por isso, é fundamental o estado de atenção e o motorista tem que estar descansado, com plena consciência do que está ocorrendo na pista. Além disso, Kleinubing acrescenta a importância desse tipo de exame para a prevenção dos acidentes.
Em 26 de abril de 2012, ocorreu no Rio Grande do Sul um dos acidentes de maior repercussão no país, quando um caminhoneiro, que dirigia cansado, sob efeito de anfetaminas, perdeu o controle do veículo numa curva e colidiu com um comboio de viaturas policiais e carros de equipes de reportagem. Na ocasião um repórter da Band e seu cinegrafista morreram. Ficou comprovado que o motorista tinha rebite dentro do veículo e os exames clínicos confirmaram que ele estava sob efeito da droga. Além da fadiga do motorista, ainda contribuiu para o acidente o péssimo estado de manutenção do caminhão.
Ao focar nessa primeira fase nas categorias C, D e E, o objetivo principal das autoridades é reduzir os acidentes com motoristas profissionais. Principalmente nas estradas pelas graves consequências dos acidentes com motoristas transportando, por exemplo, 30 toneladas de carga ou dezenas de passageiros.
A exigência desses exames visa também combater o aumento do uso de drogas por motoristas profissionais, o chamado rebite, que está sendo substituído pela cocaína. Vários estudos comprovam o aumento do consumo de drogas lícitas e ilícitas por motoristas profissionais para suportar as extenuantes jornadas ou por irresponsabilidade.
Para Nauber Nascimento, representante da ANTT- Agência Nacional de Transportes Terrestres no Contran, Conselho Nacional de Trânsito,a medida ajuda a purificar o mercado e aumentar a segurança dos usuários das rodovias. “Como Conselheiro da Agência no CONTRAN, fui favorável a esta resolução, pois entendemos que amplia a segurança, em primeiro lugar, mas também pode se constituir em um instrumento eficiente para a cada vez maior profissionalização dos ofertantes, sobretudo no transporte de cargas.”
No Brasil ainda não existem estatísticas sobre quantos acidentes ocorrem todos os anos com motoristas sob efeito de drogas, mas nos EUA a estimativa mais conservadora é de que 20% dos acidentes são causados por esses motoristas, provocando a morte de mais de 6.500 pessoas por ano e ferimentos em outras 400 mil.
Apesar da falta de dados estatísticos no Brasil não faltam estudos relacionando o trabalho como motorista profissional, o uso de drogas e acidentes de trânsito. A questão é objeto de vários documentos e pesquisas há mais de 20 anos, realizadas por pesquisadores de algumas instituições mais respeitadas do país. Apesar do alerta desses estudiosos, praticamente nada foi feito para combater o problema que agora assume proporções catastróficas.
O primeiro levantamento que teve repercussão nacional e despertou a atenção da mídia, foi uma operação realizada pelo Ministério Público do Trabalho e Polícia Rodoviária Federal, em Rondonópolis no Mato Grosso, em 2007.
Na ocasião, 104 motoristas fizeram exames de urina e foi detectado suspeita de uso de cocaína por 51% deles e 3% estavam em estado de alucinação, sem a menor condição de dirigir. Com o exame de larga janela o índice poderia ser muito maior.
Para Paulo Douglas de Almeida, do Ministério Público do Trabalho, que coordenou a operação, os exames de larga janela devem ser aplicados no futuro para todos os motoristas. “Entendo que nesse momento os motoristas profissionais sejam os primeiros, mas é preciso entender também que, na maioria dos casos, eles não usam anfetaminas e outras drogas porque querem, mas porque são levados a isso pela jornada abusiva de trabalho”. O alerta do Procurador é para que a sociedade entenda que, se os motoristas continuarem sendo explorados, dificilmente conseguiremos reduzir o consumo de drogas.
Excesso de jornada – Problema antigo que muitas vezes leva a droga
Em 2002 a Confederação Nacional dos Transportes realizou pesquisa com caminhoneiros e apurou que existiam 1,2 milhão de autônomos, com jornada média de 15 horas por dia. Dos motoristas entrevistados 51,5% informavam trabalhar entre 13 e 19 horas por dia e 10,4% mais de 20 horas. Essas condições desumanas, inclusive com pernoite em cabines minúsculas, sem conforto e segurança, acrescidas de prêmios para quem chega antes, foram estimulando o uso de rebites e agora drogas ilícitas para sobreviver num mercado cada dia mais desumano.
O uso mais frequente pelos motoristas que querem ou precisam dirigir muitas horas sem parar é dos medicamentos a base de anfetamínicos, principalmente os moderadores do apetite, que possuem em sua composição principalmente fenproporex e anfepramona (dietilpropiona). Conhecidos como rebites e utilizados em misturas exóticas que vão de guaraná em pó a energéticos. A situação é tão grave que se estima que 60% da produção mundial de fenproporex é exclusivamente utilizada no Brasil.
Na tese de mestrado apresentada na Universidade Federal de Santa Catarina em 2004, a Engenheira Maria Terezinha Zeferino realizou importante pesquisa intitulada: “Acidente de trânsito e os estimulantes do tipo anfetaminas. Estudo de caso junto às empresas de transporte rodoviário de cargas no Estado de Santa Catarina”, na dissertação da especialista, ficou evidente o conhecimento e tolerância das empresas em relação ao uso de anfetaminas. “A pesquisa, realizada com 48 empresas de transporte de cargas de Santa Catarina, apurou que 96% das empresas pesquisadas sofreram acidentes de trânsito, resultando em morte ou lesão permanente do motorista a serviço da empresa, sendo que este índice de acidentalidade pode ser influenciado pelo uso de drogas, pois 48% das empresas responderam que seus motoristas fazem uso de drogas e destas 65% evidenciaram o uso de anfetaminas “rebites” pelos caminhoneiros.”, explicava então Maria Zeferino.
Outro trabalho importante foi realizado pelo Prof. Edmarlon Girotto da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, em que foram pesquisados e entrevistados 670 motoristas de caminhão no Porto de Paranaguá, intitulado: “Características do trabalho, consumo de substâncias psicoativas e acidentes de trânsito entre motoristas de caminhão”.
Publicado em 2014 o estudo revelou que “o consumo de substâncias psicoativas para suportar a carga de trabalho antes ou durante a direção, ao longo de toda a profissão de motorista, foi referido por 50,7% dos motoristas avaliados. Dentre aqueles que referiram consumo de substâncias psicoativas, as mais citadas foram: anfetaminas (67,1%), anfetaminas com energéticos (17,1%) e energéticos (6,5%). O consumo de anfetaminas e cocaína (isoladamente ou em associação com outras substâncias) foi mencionado por 90,6% e 4,7% dos motoristas relataram consumo de psicoativos.”
Girotto afirma que considera a nova resolução do Contran extremamente válida, até porque em outros países mostraram resultados positivos em relação ao trânsito e reforça a posição do Procurador do MPT, Paulo Douglas: “ A maior culpa do uso de tais substâncias pode não ser do motorista de caminhão. Vejo que, na maioria das vezes, ele é indireta ou diretamente obrigado a consumi-los, pois precisa cumprir prazos não condizentes com a capacidade suportável de carga de trabalho humana.”, acrescenta Girotto.
Muitos caminhoneiros reclamam que o uso de drogas e anfetaminas cria uma concorrência desleal. Paulo Vieira, que trabalha há mais de 35 anos dirigindo caminhões e ônibus, explica que muitas vezes perde serviço porque não aceita usar drogas. “Tem transportadora que entrega a documentação da carga junto com o rebite porque sabe que não há como cumprir o horário a não ser abrindo mão do sono. Quando o motorista não aceita dirigir nessas condições, infelizmente, aparece outro e pega o serviço. Além disso, tem muito menino novo entrando na estrada que já usa droga. Para eles é normal. Como o pai de família sério pode concorrer com isso? ”
Em recente matéria sobre a questão da jornada de trabalho dos motoristas profissionais e o aumento do uso de rebite, vários caminhoneiros defenderam no facebook do nosso portal, exames toxicológicos de larga janela regularmente e não apenas na renovação da carteira ou adição de categoria. É um indício que os próprios motoristas profissionais querem o controle do uso de drogas, afinal, além da concorrência desleal eles correm risco de vida convivendo na pista com outros profissionais que dirigem sob efeito de drogas.
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